1907
Adolfo Correia Rocha nasce em 12 de agosto em São Martinho de Anta, concelho de Sabrosa, distrito de Vila real, no seio de uma família de camponeses. Os pais (Francisco Correia Rocha e Maria da Conceição de Barros) têm mais dois filhos: José, que cedo emigra para o Brasil, e Maria, que permanecerá na aldeia natal.
1917
Conclui, com distinção, o exame da instrução primária realizado na escola de Sabrosa. O professor aconselha o pai a mandar o filho estudar para o liceu. Dada a inviabilidade económica desta proposta, o pai coloca duas hipóteses: a ida para o seminário ou a viagem para o Brasil. A mãe, duvidosa da vocação sacerdotal do filho, manda-o para o Porto, onde ficará a servir na casa de uma família burguesa. Sentindo-se revoltado, e não vendo futuro na sua condição de criado, acaba por forçar o seu próprio despedimento.
1918
Com uma recomendação do padre de S. Martinho de Anta, Adolfo Rocha vai estudar para o seminário de Lamego, onde apenas permanece um ano. Tendo perdido a fé, ao fim desse primeiro ano, recusa-se a continuar no seminário.A passagem por Lamego, como dirá mais tarde no Diário, foi decisiva; aí passou “um dos anos cruciais” da sua “vida de menino”. A problemática religiosa irá ocupar na obra de Miguel Torga um lugar digno de registo.
1920
Adolfo Rocha emigra para o Brasil para onde os pais o enviam. Irá trabalhar durante cinco anos na fazenda de um tio paterno, a Fazenda de Santa Cruz, no Estado de Minas Gerais. Um relato impressivo deste período pode ler-se nas páginas de "o Segundo Dia" de A Criação do Mundo.
"Começava a ficar homem. No meio daquela pujança tropical, crescia também. Mas enquanto que o corpo se desenvolvia em tamanho – todos os dias tinha a impressão de não caber na roupa –, a alma apenas medrava em amargura. Amargura de me sentir injustamente odiado por minha tia, de ser como um estranho para meu tio, de viver aperreado no seio da liberdade"
1925
Adolfo Rocha regressa do Brasil. O tio decide recompensá-lo pelos cinco anos de trabalho na fazenda, pagando-lhe os estudos em Coimbra. Instala-se num colégio na Estrada da beira (actual Rua do Brasil) e em dois anos apenas completa os primeiros cinco do curso geral dos liceus. Sai do colégio e, alugando um quarto, passa a frequentar o Liceu José Falcão (instalado, na época, no antigo colégio Universitário de S. Bento). Apresenta-se a exame e conclui num só ano os dois últimos do curso liceal.
1928
Inicia os estudos de medicina na Universidade de Coimbra. Passa a morar na república de estudantes “Estrela do norte”, no nº 6 da Ladeira do Seminário. Adolfo Rocha publica o seu primeiro livro, Ansiedade, uma colectânea de poemas cujo título se revelará emblemático face ao que virá a ser o percurso literário do autor. O livro jamais será reeditado. Em 1981, quando organiza a Antologia Poética, Miguel Torga apenas recupera um verso do seu primeiro livro: “(…) Sinto o medo do avesso (…)”.
1929
Adolfo Rocha começa a frequentar a tertúlia literária do café Central e inicia a sua colaboração na Presença, revista fundada dois anos antes por Branquinho da Fonseca, João Gaspar Simões e José Régio. O contacto com o grupo presencista é decisivo para a formação estético-literária do poeta. Vem-lhe deste tempo o fascínio pelo cinema (de que os primeiros volumes do Diário dão conta) e por certos autores que o iriam marcar profundamente (Goethe, Dostoievsky, Proust, Gide, Jorge Amado, José Lins do Rego, Cecília Meireles, Jorge de Lima). A sua primeira participação na revista ocorre no n.º 19 (Fevereiro-Março), onde publica o poema “Atitudes”. Neste ano, colabora ainda em mais dois números da Presença: no n.º 22, com os poemas “Baloiço” e “Inércia”, e no n.º 23 com o poema “Remendo”.
1930
Continua a colaborar na Presença: no n.º 24 (Janeiro), saem dois poemas (“Balada da Morgue” e “Compenetração”) e no n.º 26 (Abril-Maio) é publicado um texto em prosa (“O Caminho do Meio”). Publica Rampa, livro de poesia que sai nas edições da Presença. A 16 de Junho, Adolfo Rocha, Edmundo Bettencourt e Branquinho da Fonseca enviam uma “Carta a José Régio e João Gaspar Simões, directores da Presença”, a participar o afastamento do grupo: “trata-se duma barca que não vai com os nossos rumos nem para o Norte de cada um…// Por isso saímos dela: aliviada dos nossos destinos, talvez possa chegar melhor…”
A carta, difundida sob a forma de folheto volante, provoca a primeira cisão dentro da Presença. as razões apresentadas para a saída prendiam-se essencialmente com aquilo que os signatários consideravam um desvirtuamento do espírito inicial do projecto, acusando os directores visados do cerceamento das liberdades criadoras (“Presença aponta-nos confiante a perspectiva dum tipo único de liberdade”) e da imposição de um magistério literário ao grupo (“Presença concebe mestres e discípulos com aquela interpretação convencional, em que
os mestres fazem lições para os que reputam alunos”).
Perante o desalento de Branquinho da Fonseca, na sequência da ruptura com a Presença, Adolfo Rocha escreve ao amigo, a 27 de julho, assumindo a responsabilidade pela dissidência (n’A Criação do Mundo, Miguel Torga, reportando-se a este episódio, fala da “cisão do grupo, de que eu fora o principal responsável”).
Com este amigo, funda a revista Sinal, que terá vida efémera: apenas sairá um número, no mês de Julho, com a colaboração exclusiva dos dois jovens escritores (Branquinho da Fonseca assina com o pseudónimo António Madeira).
Destaque-se o texto de Adolfo Rocha, “meditação poética sobre uma carta que chegou ao seu destino”, onde se pode perceber o ataque veemente aos ex-companheiros da Presença.
Uma auto-avaliação global deste projecto gorado é feita por Torga n’“O Terceiro Dia” de A Criação do Mundo:
“As boas intenções de fazer dela um farol de nova luz, não bastaram. Sobrestimara as próprias forças. Pudera discordar dos antigos companheiros, tivera a coragem de abandonar o movimento e arrostar com todas as consequências, mas faltava-me voz para dizer aonde
queria ir. E falhei. O primeiro número que apareceu foi um desastre. Era ingénuo e tumultuoso. Quase todo preenchido por mim, além dessa gaguez expressiva, patenteava ainda uma evidência que o não recomendava a ninguém: a minha solidão”.
Fernando Pessoa escreve uma carta a Adolfo Rocha, agradecendo o exemplar de Rampa que lhe havia sido enviado, e apresentando alguns conselhos em torno do modo de perspectivar a sensibilidade e a inteligência na arte poética.
Adolfo Rocha responde em termos contundentes, discordando de pessoa e expondo o seu ponto de vista. Pessoa escreverá de novo uma extensa carta desenvolvendo as suas ideias estéticas.
1933
Adolfo Rocha conclui a licenciatura em medicina.
Coimbra, 8 de Dezembro de 1933
"Médico. Conforme a tradição, mal o bedel disse que sim, que os lentes consentiam que eu receitasse clisteres à humanidade, conhecidos e desconhecidos rasgaram-me da cabeça aos pés. Só deixaram a capa. E aí vim eu pelas ruas fora o mais chegado possível à minha própria realidade: um homem nu, envolto em três metros de negrura, varado de lado a lado por um terror fundo que não diz donde vem nem para onde vai."
(Diário I, 1941).
Regressa a S. Martinho de Anta para aí exercer clínica.
1934
Publica a novela A Terceira Voz. É com este livro que adopta o nome literário Miguel Torga. No prefácio, a despedida do nome civil é assinada por Adolfo Rocha:
Com um ósculo vo-lo entrego. Chama-se Miguel Torga. Somos irmãos e temos a mesma riqueza. Mas há dias reparámos nesta coisa simples: para que aos vossos olhos um de nós surgisse Cristo, necessariamente o outro tinha de fazer de Judas. E eu sacrifiquei-me. […] Ficas tu, Miguel Torga, mas não me chames Judas, porque só para efeitos legais (já que o auto tem de abrir com todas as cerimónias do estilo) eu me resigno a ser aquele que, cheio de remorsos, se enforcou numa figueira e, dela pendente, jaz, ad aeternum morto, comido
dos bichos e com a língua de fora…
Adolpho Rocha
O nome “Torga” é a designação da urze da montanha e o nome “Miguel” é assumido como uma homenagem a Miguel de Cervantes e Miguel de Unamuno, dois vultos maiores da cultura ibérica.
Deixa S. Martinho de Anta e muda-se para Vila Nova, freguesia do concelho de Miranda do Corvo, no distrito de Coimbra, onde passará a exercer as funções de médico clínico geral. Em “O Terceiro Dia” de A Criação do Mundo, Miguel Torga descreve admiravelmente os obstáculos com que se deparou no exercício das novas funções:
“Um Portugal velho e rotineiro, de senhores e servos, estava ali vivo e presente. De mão vazia, ninguém pedisse justiça, conforto divino, instrução ou saúde. Parasitas do povo, o padre, o médico, o professor e o juiz, em nome de Deus, do saber, da lei ou do Esculápio, exigiam-lhe todas as formas de preitesia, a começar pela mais concreta: o óbulo dos frutos da terra”
1935
Rende homenagem a Fernando Pessoa, numa nota do Diário, quando da morte do poeta:
Vila Nova, 3 de Dezembro de 1935
Morreu Fernando Pessoa. Mal acabei de ler a notícia no jornal, fechei a porta do consultório e meti-me pelos montes a cabo. Fui chorar com os pinheiros e as fragas a morte do nosso maior poeta de hoje, que Portugal viu passar num caixão para a eternidade sem ao menos perguntar quem era.
(Diário, I, 1941).
Serão recorrentes, ao longo da obra de Miguel Torga, as referências admirativas a Fernando pessoa. Em 1983, escreverá que “ninguém antes tinha realizado o milagre de criar de raiz um portugal feito de versos.”
(Diário, XIV, 1987)
1936
Publica O Outro Livro de Job, livro de poesia, que se impõe no meio literário português, e onde se afirma a imanência humanista da poética torguiana. Miguel Torga funda, com o crítico albano nogueira, a revista Manifesto. O n.º 1 sai em Janeiro. na secção “Via pública”, espaço fixo de diálogo e intervenção, é feita uma das primeiras homenagens ao poeta da Mensagem, recentemente desaparecido (“Fernando pessoa era porventura o maior poeta português deste século. Engrandecido pelo seu isolamento, obscurecido pela sua obra só parcialmente publicada, – é cedo ainda para julgá-lo”). neste espaço irão surgir pequenos textos interventivos como acontecerá no n.º 2, saído no mês de fevereiro, com o apoio manifestado a Thomas Mann, quando da renúncia deste à nacionalidade alemã por motivos políticos. Manifesto apresenta-se como uma revista que, contrariamente à tendência psicologista e estetizante da Presença, se pretende atenta à intervenção do escritor na sociedade, e propõe uma arte enraizada no real, como afirma Torga em “O Terceiro Dia” de A Criação do Mundo: “Queríamos uma arte rebelde, enraizada no circunstancial. A Vanguarda [criptónimo da Presença] nunca valorizara suficientemente a realidade. O velho mundo burguês, abalado nas estruturas, estrebuchava nas vascas da agonia, desenhavam-se além-fronteiras os primeiros sinais doutra aventura humana, e ela alheada no seu subjectivismo macerador. Essa pertinaz atitude introspectiva diminuía o alcance do esforço renovador que empreendera, de que sentia legítimo orgulho, mas que só esteticamente dera frutos positivos”
1937
Publica “os Dois primeiros Dias” de A Criação do Mundo, romance autobiográfico.
Em Dezembro deste ano viaja para a Europa, regressando em janeiro do ano seguinte. Atravessa a Espanha franquista, em plena guerra civil, e viaja por França, Itália, Suíça e Bélgica.
Marselha, 25 de Dezembro de 1937
[…] Viajar, num sentido profundo, é morrer. É deixar de ser manjerico à janela do seu quarto e desfazer-se em espanto, em desilusão, em saudade, em cansaço, em movimento, pelo mundo além.
Nesta hora, aqui deitado na cama dum Hotel Continental qualquer, a ouvir os passos de um milhão de pessoas na Canebière, que sou eu? Uma pura ressonância morta de uma vida longínqua.
Quando amanhã me erguer, e for outra vez manjerico na minha terra, deste dia, desta hora, desta grande cidade, do que fui nela, que terei eu na mão? Nada, porque não foi nada aquilo que o Lázaro trouxe da sepultura.
(Diário I, 1941)
Além de apresentar anotações desta viagem no Diário, essa experiência será relatada n’O Quarto Dia de A Criação do Mundo.
Passa a colaborar com regularidade na Revista de Portugal, dirigida por Vitorino Nemésio, cujo número inaugural sai neste ano. até ao número 10 (novembro de 1940), publica textos em todos os números da revista: desde páginas do Diário e de A Criação do Mundo, a contos de Bichos e ainda alguns poemas.
No primeiro volume do Diário, registará no mês de setembro a ida às Termas de S. Vicente para tratamentos (“mais um dia perdido a enxofrar o nariz”).
A passagem pelas mais variadas estâncias termais constituirá uma rotina obrigatória nas férias do poeta. cinquenta anos depois, anotará, no Diário XV:
Chaves, 29 de Agosto de 1987
Os habituais quinze dias terapêuticos a ingerir linfas cálidas. Sou médico, mas acredito mais na natureza do que na ciência. E tenho inscrições votivas em todas as fontes de Portugal
1938
Publica “O Terceiro Dia” de A Criação do Mundo.
Obtém a especialidade em otorrinolaringologia pela Faculdade de medicina da Universidade de Coimbra.
Devido a algumas dificuldades com a Censura, sai no mês de julho o quinto e último número da revista Manifesto. Neste número, tal como no anterior, publicado em julho de 1937, apenas figurará o nome de Miguel Torga como director. Aliás, o n.º 5 é exclusivamente preenchido com textos de Torga. Esta revista representará a sua última intervenção num projecto colectivo.
A partir daqui, o seu percurso literário afirmar-se-á com um notável espírito de independência. continuará a publicar a sua obra sempre em edições de autor, recusando-se a enviar os livros à censura prévia.
Conhece Andrée Crabbé, sua futura mulher, em casa de Vitorino Nemésio, em Coimbra.
1939
No mês de junho, estabelece-se como médico otorrinolaringologista em Leiria, passando a residir no n.º 5 da rua comandante João Belo, edifício onde se situa igualmente o consultório. Continua a ir a Coimbra nos fins-de-semana para se encontrar com um grupo de amigos escritores e intelectuais (António de Sousa, Paulo Quintela, Vitorino Nemésio, Afonso Duarte, Martins de Carvalho…).
A passagem por Leiria será marcante. Quarenta anos depois de ter saído da cidade, escreverá no Diário:
“Esta terra foi a grande encruzilhada do meu destino. Aqui identifiquei e escolhi os caminhos da poesia, da liberdade e do amor, sem dar ouvidos às vozes avisadas da prudência, que pressagiavam o pior. Aqui, portanto, arrisquei tudo por tudo, fazendo das fraquezas forças, das dúvidas certezas, do desespero esperança”
20 de Novembro de 1980, Diário, XII.
Publica “O Quarto Dia” de A Criação do Mundo. Esta narrativa, ao apresentar o testemunho de uma viagem a Itália e da travessia de Espanha, em plena guerra civil, faz uma clara denúncia do franquismo e do fascismo de Mussolini.
No dia 30 de Novembro, os serviços secretos da PVDE, por determinação do ministro do interior, emitem uma ordem “confidencial” para que se proceda “à apreensão do livro ‘O Quarto Dia da Criação do Mundo’, da autoria de Miguel Torga, e à detenção deste” [processo 1514/39 (nT4598)].
Miguel Torga é preso pela PSP de Leiria. São apreendidos os exemplares do livro existentes nas várias livrarias do país.
No dia 2 de Dezembro, os serviços secretos da delegação da PVDE de Lisboa solicitam a transferência de Miguel Torga para Lisboa. No dia 3 de Dezembro, passa pela sede da PVDE, na Rua António Maria Cardoso, antes de ser encaminhado para a prisão do Aljube.
Na prisão, escreve um dos seus mais célebres poemas de resistência, “Ariane”, incluído no volume I do Diário.
1940
Miguel Torga é libertado a 2 de fevereiro, por decisão comunicada por telefone pelo ministro do interior à Delegação da PVDE de Lisboa.
Casa, em Coimbra, com Andrée Crabbé no dia 27 de Julho. Foram padrinhos de casamento os amigos Paulo Quintela e Martins de Carvalho.
Publica Bichos, um dos livros de contos mais originais da literatura portuguesa, que se afirmará como o maior êxito literário do autor.
1941
Publica o volume I de Diário, início de uma monumental e singularíssima obra de feição intimista (na totalidade serão publicados dezasseis volumes).
Dá à estampa o volume de teatro Terra Firme. Mar(em 1947 sairá uma edição autonomizada de Terra Firme; o mesmo acontecerá posteriormente com a peça Mar, que terá edição separada em 1958).
Publica também neste ano o livro de contos Montanha, que será apreendido pela PVDE. Miguel Torga fará publicar uma edição no Brasil, em 1955, com o título Contos da Montanha. O livro irá circular clandestinamente em Portugal até 1968, ano em que passará a ser novamente editado em Coimbra, em edição do autor.
Passa a viver na cidade de Coimbra, no n.º 32 da Estrada da Beira.
Abre o consultório num andar do Largo da Portagem, n.º 45.
No Segundo Congresso Transmontano, realizado no casino das Pedras Salgadas, apresenta no dia 11 de setembro uma conferência intitulada “Um Reino Maravilhoso”. Este texto sobre Trás-os-montes viria a ser incluído
posteriormente no livro Portugal.
1943
Publica o volume II do Diário e o livro de poemas Lamentação.
Dá ainda à estampa a novela O Senhor Ventura. Este livro será reescrito em 1985, ano em que sairá a 2ª edição refundida (“Pacientemente, limpei-o das principais impurezas, dei um jeito aos comportamentos mais desacertados, tentei, enfim, torná-lo legível”). O autor fará obsessivamente revisões dos seus textos; e muitos deles serão mesmo reescritos, como veio a acontecer com O Senhor Ventura,
42 anos depois de o ter publicado pela primeira vez.
1944
Publica o livro de poemas Libertação.
Neste ano também dá à estampa Novos Contos da Montanha, um dos mais celebrados livros do autor.
Dois contos deste livro (“O caçador”, “A caçada”) reenviam explicitamente para a caça, uma das paixões de Torga.
S. Martinho, 3 de Outubro de 1949
Não consegui explicar ainda a causa deste sentimento de segurança que se apodera de mim quando me embrenho pelas serras à caça. É uma paz de preservação, de anonimato, de intangibilidade. [… ] Mas à solta por estas brenhas, em perfeito equilíbrio de alma e corpo, sinto-me na plenitude do ser normal, casado e harmonizado com o meio.
(Diário, V, 1951)
No dia 5 de Fevereiro, apresenta uma conferência sobre a cidade do Porto no Clube Fenianos Portuenses (texto que seria publicado, neste mesmo ano, com o título “O Porto”, e que viria a ser integrado posteriormente no livro Portugal).
Sophia de Mello Breyner Andresen assiste a esta conferência e é apresentada a Miguel Torga pelo amigo comum Fernando Valle Teixeira. O encontro de Sophia com Torga foi decisivo para a escritora; na sequência do encontro, Sophia enviará 12 poemas ao autor de O Outro Livro de Job. Torga manifesta grande interesse em ler mais poemas e, neste mesmo ano, acabará por sair em Coimbra, em edição da autora, o primeiro livro de Sophia, Poesia. A amizade recíproca entre os dois autores perdurará ao longo dos anos; e será a situação de Torga, preso por causa de um livro, que levará Sophia, em 1969, a aderir como sócia fundadora à “Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos”.
Pronuncia mais uma conferência (“Eça de Queiroz – um problema de consciência”), na cidade do Porto, no final do ano (24 de Novembro), no âmbito das comemorações do centenário do autor de Os Maias.
1946
Publica o livro de poesia Odes e o volume III do Diário.
Neste ano, é publicado o poema “Federico García Lorca” a encabeçara Antologia Poética de Federico García Lorca (Coimbra Editora). O volume apresenta um estudo introdutório de Andrée Crabbé Rocha; a tradução dos poemas é de Eugénio de Andrade.
No dia 25 de Abril, recebe uma carta da capitania do porto da Figueira da Foz a dispensar os serviços médicos prestados à casa dos pescadores de Buarcos. São evidentes as motivações de ordem política que estão na origem deste despedimento.
O Teatro Moderno da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa encena a peça Mar (em Abril do ano seguinte, este grupo de teatro universitário apresentará a peça em Coimbra, no Teatro Avenida).
1947
Publica Sinfonia, poema dramático.
Andrée Crabbé Rocha é demitida das funções de professora da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, pelas suas posições democráticas (por ter criado uma época especial de exames para os alunos que tinham feito greveno período normal da avaliação). Às razões políticas da sua demissão não terá sido alheio o facto de ser casada com Miguel Torga.
A 30 de Junho, o T.E.U.C. representa a peça Terra Firme, no Teatro Avenida, em Coimbra, numa encenação de Paulo Quintela.
1948
Publica o livro Nihil Sibi. O título, “encontrado” numa fonte de Caldelas, é emblemático face ao modo de perspectivar a poesia e de dizer o lugar do poeta:
“O poeta é uma fonte:/ nada reserva para a sua sede;/canta também a dar-se,/ E não dorme, nem pára”.
Morte da mãe.
Pretende lançar uma revista mensal com o título Rebate. Estão associados a este projecto Andrée Rocha, Carlos Sinde (pseudónimo de Martins de Carvalho) e Eduardo Lourenço. A Censura criará dificuldades e o projecto não se concretizará.
É-lhe impedida a saída do país, como anota no Diário:
Coimbra, 24 de Fevereiro de 1948
Novamente me foi negado o passaporte para sair de Portugal. Prisioneiro! E vejam o absurdo dos zelos policiais! Eles a pensarem que me levavam sombrios propósitos de minar a ordem, e aqui como quem se confessa o que eu queria era ver os Velásquez do Prado, e os Memlings
de Bruges!
(Diário, IV, 1949)
1949
Publica a peça O Paraíso e o volume IV do Diário.
No início do ano, participa na campanha da candidatura do general Norton de Matos à presidência da república. Concede uma entrevista ao Diário de Notícias (que será publicada apenas no final do ano) e publica folhas volantes com mensagens enviadas aos transmontanos de Vila Real e de Chaves (documentos coligidos no livro Fogo Preso,1976).
“Saúdo-vos de Coimbra, desta Meca do fascismo português que queremos derrubar. Saúdovos como conterrâneo que aqui lutou sempre com a sua pena de artista para que tivesse fim a ignomínia de um povo inteiro oprimido por uma só vontade […]” (Mensagem aos transmontanos de Vila Real enviada na campanha eleitoral de 1949, e publicada em folha volante).
Solidariza-se com o amigo Fernando Valle, quando este, eminente figura da oposição ao regime de Salazar, é destituído dos cargos de Subdelegado de Saúde e Médico Municipal, devido ao apoio à candidatura de Norton de Matos à Presidência da República.
1950
Miguel Torga publica Cântico do Homem, um dos pontos altos da sua poesia de intervenção. A este livro pertencem os célebres poemas: “Dies Irae” e “Ar Livre”. É também neste ano que sai o volume Portugal, um livro admirável de viagem simbólica ao país e de interpretação da identidade nacional.
Realiza uma longa viagem de carro, durante mais de um mês, por Espanha, Itália e França, na companhia da mulher e do amigo Sebastião Rodrigues.
No Teatro da Universidade de Londres, é representada a peça Mar, com encenação de Ruben A., que também faz, neste mesmo ano, uma adaptação do espectáculo para a BBC.
1951
Publica o volume V do Diário e o livro de contos Pedras Lavradas.
Faz-se representar nos “Encontros Europeus de poesia”, em Knocke, enviando uma mensagem para ser aí ser lida. Neste texto, exorta os poetas a um activo comprometimento público em nome da poesia:
Coimbra. 24 de Julho de 1951
[…] Congresso, pois, de poetas, até para que seja mais clara em nós a consciência com que podemos e devemos, e a própria palavra nos comprometa como um juramento. Não simples convívio, mas um acto. Um acto de fé na poesia! Um compromisso público de que não a trairemos em nome de nenhuma tirania, de nenhuma urgência, de nenhuma conveniência.
[…]
(Diário Vi, 1953)
1952
Publica Alguns Poemas Ibéricos. Segundo nota do autor, os poemas reunidos nesta colectânea foram maioritariamente escritos durante os anos de 1935 e de 1936. Outros poemas do livro tinham sido publicados no n.º 5 da revista Manifesto, Julho de 1938 (“Sagres”, “A Largada”, “A Espera”, “O Regresso”,“O Achado”, “Tormenta” e “Mar”), no n.º 5 da Revista de Portugal, Outubro de 1938 (“Ibéria”, “A Raça” e “Santa Teresa”) e no nº 8 da mesma revista, Julho de 1939 (“Viriato”, “O Infante”, “D. Sebastião”).
1954
Publica o livro de poesia Penas do Purgatório.
Em viagem por Espanha, no mês de junho, visita Trujillo, Guadalupe, Olivença, Granada, Zamora. No Diário, ao dar conta das impressões que esses lugares lhe suscitam, vai reflectindo sobre a questão ibérica, que inspiraria continuamente o poeta.
No início de Agosto, desloca-se ao Brasil, convidado a participar no Congresso Internacional de Escritores,em São Paulo. Tratou-se de um importante encontro organizado no âmbito das celebrações do IV centenário da fundação da cidade de S. Paulo. Nele participaram Roger Bastide, João Cabral de Melo Neto, Robert Frost, William Faulkner, entre outros. No congresso, apresentou uma comunicação sobre o tema proposto: “A América vista pela Europa”. Proferiu seguidamente várias conferências em São Paulo e no Rio de Janeiro sobre os transmontanos no Brasil, sobre o drama da emigração portuguesa e sobre a Literatura portuguesa.
Esta foi uma ocasião para o poeta rever os lugares da sua adolescência – a Fazenda de Santa Cruz e o Colégio Leopoldinense:
Banco Verde, 23 de Agosto de 1954
[…] A princípio ainda cuidei que venceria essas fraquezas da emoção. Qual o quê! À medida que o tempo foi decorrendo, a energia crítica foi diminuindo. E hoje, justamente, creio que chegou ao zero. Pude verificá-lo há pouco, a contemplar o edifício do Ginásio onde o mundo da Cultura me abriu o primeiro postigo, e a pisar, agora, o chão da fazenda que há trinta anos ensopei de lágrimas. […]
(Diário, VII, 1956).
É atribuído a Miguel Torga o Prémio Almeida Garrett,do Ateneu comercial do Porto. Na cerimónia de entrega do prémio, a 9 de Dezembro, o poeta profere um discurso colocando à disposição do Ateneu a quantia que iria receber, propondo que essa importância fosse utilizada na publicação das melhores obras dos poetas jovens concorrentes ao prémio:
[…] é a poesia nova, a poesia nascente, a que traz esperança, que eu gostaria de ver glorificada nesta casa, à sombra tutelar de Garrett, poeta eternamente jovem que foi, além de poeta livre, homem livre e português livre que também quis e conseguiu ser.
(Diário, VII, 1956).
1955
Publica Traço de União, um livro de ensaios de temática luso-brasileira, onde reúne as conferências pronunciadas no Brasil, no ano anterior, acrescentando outros textos relacionados com os dois pólos (Portugal e Brasil); e ainda evocações de escritores (José Lins do Rego e Ribeiro Couto).
Nascimento da filha única, Clara.
1958
Publica o livro de poesia Orfeu Rebelde.
Representação da peça Mar pelo Teatro Experimental do Porto, com encenação de António Pedro. Torga assiste ao espectáculo no dia 28 de Abril.
No dia 31 de Maio, participa no comício da campanha de Humberto Delgado em Coimbra (Teatro Avenida).
“Coimbra, 31 de Maio de 1958
[…] Surdo à opinião dos governados, o poder nunca aqui ouviu senão a própria voz, auto-embalo que bate nas paredes da auto-suficiência, e se reflecte sem deformação. Mas embora possa ser irrisório e desprovido de acção imediata, um protesto é sempre um protesto. Uma vez feito, desliga espiritualmente o seu autor da canga rotineira a que vai jungido, compromete-o publicamente com a subversão, solidariza-o com os demais revoltados, e movimenta a passividade, irmã gémea da conivência.”
(Diário VIII, 1959)
Em Maio, no final da comemoração das Bodas de Prata do Curso Médico de 1933, os colegas decidem homenagear Miguel Torga. A cerimónia é marcada para o dia 7 de Dezembro. Nesta homenagem é descerrada uma placa a assinalar a passagem de Miguel Torga pela república “Estrela do norte”, onde residiu quando estudante de Medicina.
No mês de Junho, faz uma viagem a Espanha, Andorra, França, Bélgica e Holanda.
No Porto, grava poemas para um disco da etiqueta Orfeu, de Arnaldo Trindade.
Miramar, 12 de Setembro de 1958
Gravar poesia nossa… Entrar numa câmara de silêncio, ler versos, e ouvir depois a própria voz desligada do corpo, sozinha, estranhamente exaltada ou enternecida, ora grave, ora aguda, áspera e suave no mesmo instante, mas sempre aflita, a clamar na solidão da noite como uma alma penada…
(Diário, VIII, 1959)
1959
Publica o volume VIII do Diário.
Representação da peça Mar pelo CITAC (Círculo de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra), com encenação de Paulo Quintela (15 de Março).
No final do ano, Jean-Baptiste Aquarone, professor da Universidade de Montpellier, com o apoio de um grupo de intelectuais franceses, belgas e italianos, apresenta à Academia Sueca a candidatura de Miguel Torga ao Prémio Nobel da Literatura de 1960.
1960
No início de Janeiro, os jornais portugueses davam conta de duas candidaturas portuguesas ao Prémio Nobel da Literatura: Miguel Torga e Aquilino Ribeiro.
A candidatura de Torga é entusiasticamente apoiada por Sophia de Mello Breyner Andresen, Eugénio de Andrade, Alexandre O’neill, David Mourão-Ferreira, entre outros escritores e intelectuais.
No dia 20 de Fevereiro, os serviços da PIDE procedem à apreensão do Diário VIII, nas livrarias de várias cidades do país.
Um grupo de escritores e intelectuais apresenta um abaixo-assinado de protesto contra a apreensão deste livro. Subscrevem o protesto, entre outros, Fernando Piteira Santos, Pedro da Silveira, Manuel da Fonseca, Urbano Tavares Rodrigues, Jaime Cortesão, Raul Rego, Armindo Rodrigues e Manuel Mendes.
A 25 de Fevereiro é levantada a ordem de apreensão do Diário VIII; contudo, a censura proíbe que na imprensa sejam feitas referências ao livro.
Neste ano, faz mais duas das suas “viagens meteóricas a Espanha”, como regista no Diário. Em Abril desloca-se a Salamanca e a Madrid; em Junho vai a Mérida, a Trujillo e, de novo, a Madrid.
1962
Publica o livro de poesia Câmara Ardente
1964
Publica o volume IX do Diário.
1965
Publica Poemas Ibéricos. Este livro resulta de uma revisão e de uma ampliação do livro Alguns Poemas Ibéricos, que havia saído em 1952.
1966
Representação da peça Mar pelo Teatro Experimental de Cascais, com encenação de Carlos Avilez e cenários de Almada Negreiros (estreia em 6 de Maio). Torga assiste ao espectáculo no dia 28 de Maio.
1967
No dia 12 de Setembro, participa numa celebração do centenário da abolição da pena de morte em Portugal, realizada na Universidade de Coimbra. Miguel Torga lê na ocasião uma conferência, posteriormente editada numa brochura da imprensa da Universidade, que o autor integrará no volume X do Diário.
“Convidado a participar neste colóquio comemorativo da abolição da pena de morte em Portugal, é na dupla condição de poeta e de médico que estou aqui. O poeta representará, como puder, o ardor indignado e fraterno de quantos, de Villon a Victor Hugo, de Gil Vicente a Guerra Junqueiro, protestaram contra o iníquo pesadelo, e contribuíram para a sua extinção ou repulsa na consciência universal; o médico simbolizará, com igual modéstia, a interminável falange daqueles que foram sempre, e são ainda, em todas as sociedades, os inimigos jurados e activos de qualquer forma de aniquilamento humano”.
No dia 15 de Dezembro, subscreve um documento de protesto, assinado por vários políticos e intelectuais portugueses, entre os quais Mário Soares, Francisco Sousa Tavares e Francisco Salgado Senha, enviado por carta ao Presidente da Assembleia Nacional. Pede-se aí a aprovação da Lei de Imprensa, a abolição da censura prévia e a possibilidade de interpor recurso para uma instância judiciária nas situações de apreensão de livros.
1969
Recusa o Prémio Nacional de Literatura, um galardão oficial do regime.
No dia 19 de Abril, recebe o prémio “Diário de Notícias” pelo seu livro mais recente (o volume X do Diário), distinção que contempla igualmente o conjunto da sua obra literária.
Participa no II Congresso Republicano, que decorre em Aveiro, de 15 a 17 de maio.
Aveiro, 16 de Maio de 1969
Congresso republicano. Mal entrei na sala e me sentei, aproximou-se um jornalista a pedir uma palavra para o jornal. E desiludi-o:
Desculpe, mas estou aqui como povo, e o povo, em Portugal, não diz nada.
(Diário XI, 1973)
Subscreve o manifesto “Dos Escritores ao país”. Os signatários, que propõem o “restabelecimento completo das liberdades em Portugal”, criticam duramente a situação política do país. Este documento não chegou a circular, tendo a sua divulgação sido proibida pela Censura.
1970
No final de Agosto, viaja de carro até à Alemanha e a Itália.
A sua mulher, Andrée Crabbé Rocha, é readmitida na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
1973
Publica o volume XI do Diário.
Em Maio, faz uma viagem a Angola e a Moçambique, acompanhado pelo padre Valentim Marques, gerente da Gráfica de Coimbra.
Sobre as motivações desta viagem, escreve n’ “O Sexto Dia” de A Criação do Mundo:
“Na convicção dessa mudança inevitável, de consequências imprevisíveis, resolvi aproveitar o interregno para fazer uma viagem às terras onde nos batíamos na defesa absurda de um império que não tínhamos sabido construir na hora própria e teimávamos em conservar na hora imprópria. Mais uma vez a minha ancestralidade calcorreadora vinha à tona. Pisara já o Norte de África, mas de fugida, num longo passeio pelo Mediterrâneo grego. Seria agora a altura de sentir pulsar o seu quente coração austral, a contemplar os cenários das nossas grandezas passadas e das nossas misérias presentes”.
A polícia política vigia todos os passos do escritor durante esta viagem, como o compravam diversos relatórios e notas informativas da Direcção Geral de Segurança constantes do processo de Miguel Torga nos arquivos da PIDE/DGS.
1974
Participa nos festejos do 1º de maio na cidade de Coimbra. Regista no Diário a “explosão gregária de alegria indutiva a desfilar diante das forças de repressão remetidas aos quartéis”. Contudo, interroga-se cauteloso sobre o rumo dos ventos da mudança: “Que oculta e avisada abnegação estaria pronta para guiar no caminho da história a cegueira daquela confiança?”
Publica O Quinto Dia da Criação do Mundo. O livro, que saiu uma semana após o 25 de abril, aborda apenas um período de dois anos da vida do escritor, com destaque para o episódio da prisão de Torga em 1939.
No dia 1 de Junho, participa no primeiro comício do partido socialista realizado em Coimbra. Profere o discurso de abertura onde celebra a hora “de júbilo e comunhão à mesa eucarística da liberdade”, terminando com palavras de esperança. No dia 30 do mesmo mês, participa noutro comício socialista em Sabrosa.
1975
Participa, como independente, em mais dois comícios do partido socialista (em Arganil, no dia 2 de Março; em Lisboa, no dia 20 de Abril).
Intervém civicamente na imprensa ao publicar uma “carta Vagante” (saída a 6 de Março, no jornal vespertino A Capital), em que responde a um artigo de Natália Correia, publicado no mesmo jornal, no dia 28 de Fevereiro, com o título “O silêncio dos melhores é cúmplice do alarido dos piores”.
Continua a anotar no seu Diário os acontecimentos marcantes do regime democrático recentemente instaurado:
Coimbra, 25 de Abril de 1975
Eleições sérias, finalmente. E foi nestes cinquenta anos de exílio na pátria a maior consolação cívica que tive. Era comovedor ver a convicção, a compostura, o aprumo, a dignidade assumida pela multidão de eleitores a caminhar para as urnas, cada qual compenetrado de
ser portador de uma riqueza preciosa e vulnerável: o seu voto, a sua opinião, a sua determinação. Parecia um povo transfigurado, ao mesmo tempo consciente da transcendência do acto que ia praticar e ciente da ambiguidade circunstancial que o permitia. O que faz o aceno da liberdade, e como é angustioso o risco de a perder!
No dia 27 de Setembro, profere na rádio uma alocução condenando as execuções de cinco cidadãos bascos perpetradas pelo regime de Franco.
Sinde Filipe realiza uma adaptação cinematográfica do conto “O Leproso” (Novos Contos da Montanha).
1976
Participa em comícios socialistas realizados em Vila real (3 de Abril), em Sabrosa (10 de Abril), e em Arganil (23 de Abril).
Publica Fogo Preso,livro que reúne conferências sobre escritores (Eça de Queirós e Teixeira de Pascoaes), mas especialmente textos de intervenção cívica, como entrevistas e alocuções, decorrentes da participação nas campanhas eleitorais de 1945, 1949, 1951, e em diversos momentos do período que se seguiu ao 25 de Abril de 1974.
“[…] tão premente e subversivo foi, em dado momento, acusar o poder armado, tecto de todas as arbitrariedades, como alertar agora a consciência nacional contra os equívocos de uma libertação sem francas vocações de liberdade.
[…]
Ao fazer-se homem público, o poeta empresta a voz a quem a não tem, e arrisca-se a ficar sem voz e sem eco.[…] acossado pelos problemas do quotidiano pátrio, vinculado pela dignidade e solicitado por mil apelos, também eu roubei às minhas horas autónomas de criador algumas horas de contestação directa.” (do “Prefácio”)
No mês de Maio assiste a uma representação de Mar feita por pescadores da Nazaré.
Sítio da Nazaré, 8 de Maio de 1976 – O “Mar” representado por marítimos autênticos.
Pescadores de verdade na pele de pescadores de ficção. (Diário, XII, 1977).
Em Dezembro, no dia de Natal, planta árvores no terreiro da Escola de S. Martinho de Anta:
S. Martinho de Anta, 25 de Dezembro de 1976
A velha escola do senhor Botelho finalmente reconstruída e actualizada. Mais sol, mais higiene, menos gramática e menos palmatoadas. Mas faltavam no terreiro à volta as mimosas da minha meninice. E passei a tarde de ferro e pá na mão a plantá-las. Não estarei cá para as ver crescidas como as de outrora. Deixá-lo. O meu propósito não era reflorir o passado, mas florir o futuro.
(Diário, XII, 1977)
1977
Publica o volume XII do Diário.
No mês de Junho, recebe em Bruxelas o Prémio Internacional de Poesia, da XII Bienal de Knokke-Heist, que lhe fora atribuído em Setembro do ano anterior.
Bruxelas, 6 de Junho de 1977
[…] Solidário mas autónomo, o poeta é um rebelde que sabe que a poesia apenas subverte porque transfigura, e que será esse sempre o seu vanguardismo. A cantar ao sabor da moda, um poeta vestido de bardo não é menos trágico do que um poeta ataviado de fâmulo. […]
(Diário, XII, 1977)
No seguimento da ida a Bruxelas, faz uma visita a Londres.
Colabora no filme de João Roque Eu, Miguel Torga, um documentário que passará na televisão em 1987, em quatro episódios.
Em Dezembro, participa num Encontro de Poetas, no Solar de Mateus, juntamente com Sophia de Mello Breyner Andresen, Eugénio de Andrade, Alexandre O’neill, Pedro Tamen, Fernando Guimarães, Vasco Graça Moura e Alberto Pimenta.
No âmbito deste encontro, Miguel Torga proporciona aos participantes uma visita guiada a lugares míticos da sua geografia pessoal e literária (Panóias e S. Leonardo da Galafura); na ocasião, os poetas presentes homenageiam o autor de Orfeu Rebelde.
1978
É apresentada novamente a candidatura de Miguel Torga ao Prémio Nobel da Literatura, com o apoio de figuras destacadas da cultura portuguesa, assim como de alguns intelectuais e criadores estrangeiros, entre os quais o vencedor do Prémio Nobel da Literatura do ano anterior, Vicente Aleixandre.
Em 6 de Abril, faz um discurso na Escola de S. Martinho de Anta sobre as condições da saúde no país.
S. Martinho de Anta, 6 de Abril de 1978
Discurso na escola. Todo eu tremia como varas verdes. Era a criança, que sempre fiquei, a fazer novamente exame. O júri até ministros incluía. E o tema a desenvolver dizia respeito ao abandono sanitário a que o país real está devotado. Lá discorri. Que a ciência assim e assado, que as leis da vida são solidárias, que o povo necessita de assistência concreta e não de demagogia curativa. […]
(Diário, XIII, 1983)
No mês de Setembro, participa no seminário “Repensar Portugal”, realizado no Solar de Mateus.
Solar de Mateus, 8 de Julho de 1978
Repensar Portugal. Desde pequeno que o tento de todas as maneiras e em todos os lugares.
[…]
(Diário XIII, 1983)
Recebe a Medalha de Honra da Associação Internacional de Reitores.
No dia 26 de Dezembro, no âmbito das comemorações dos cinquenta anos da vida literária de Miguel Torga, realizou-se uma sessão de homenagem ao autor, no Auditório Dois da Fundação Calouste Gulbenkian. A iniciativa da Secretaria de Estado da Cultura contou a participação de escritores e ensaístas que leram textos sobre a obra de Torga (Sophia de Mello Breyner Andresen, Alexandre O’neill, Eduardo Lourenço, Fernão Magalhães Gonçalves, Jacinto do Prado Coelho, João Maia, Vasco Graça Moura e David Mourão-Ferreira, que desempenhava as funções de Secretário de Estado da Cultura). No final, o poeta leu um discurso de agradecimento que surge reproduzido, juntamente com as outras comunicações, numa brochura da Secretaria de Estado da Cultura. Este texto de Torga seria posteriormente incluído no volume XIII do Diário:
Sei que não escrevi desses livros paradigmáticos – e nunca essa convicção foi tão cruciante como neste momento, muito embora a vossa grata presença aqui me queira dar essa ilusão. Valha-me a certeza de que o tentei até ao limite das forças, não seduzido pelo aceno de qualquer aplauso, mas na ânsia passional, quase somática, de que eles foram uma emergência expressiva, modesta mas autêntica, do plasma matricial da pátria.
Sinde Filipe adapta ao cinema mais um conto de Miguel Torga: “O Milagre” (Novos Contos da Montanha).
1979
A Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra presta uma homenagem a Miguel Torga, associando-se às comemorações dos cinquenta anos de actividade literária do escritor. No âmbito da homenagem, realizada no dia 2 de Julho, presidida pelo Reitor da Universidade, foi inaugurada uma exposição bibliográfica sobre o autor.
No dia 19 de Agosto, profere um discurso sobre o homem duriense, no Salão Nobre da Casa do Douro, na Régua, no encerramento da Feira do Douro (texto inserido no volume XIII do Diário).
1980
É atribuído a Miguel Torga o Prémio Morgado de Mateus,ex-aequo com Carlos Drummond de Andrade.
Solar de Mateus, 08 de Junho de 1980
[…] Temperamentalmente avesso a galardões de qualquer natureza, acabei no entanto por aceitar alguns deles. É que não há uniformidade de critério possível perante a surpreendente e paradoxal diversidade da vida. Que poderia eu fazer? Recusá-los por sistema, pura e simplesmente? Assim procedi quando tudo dependia da minha exclusiva vontade. Noutras ocasiões, porém, não era tão fácil a opção. Ao fim e ao cabo, nem a liberdade é livre. […]
(Diário, XIII, 1983).
Adaptação televisiva do conto “Natal” (Novos Contos da Montanha).
1981
Publica “O Sexto Dia” de A Criação do Mundo. Trata-se do último volume do romance autobiográfico (em 1991, Miguel Torga publicará uma edição conjunta dos volumes do romance, saídos ao longo de cinco décadas, desde o inaugural volume de “Os Dois Primeiros Dias”, em 1937).
Neste ano publica também uma Antologia Poética organizada por si próprio.
Recebe o Prémio Montaigne, da Fundação PVS de Hamburgo.
Lisboa, 10 de Março de 1981
[…] É minha velha convicção de que a cultura universal tem de ser o somatório de todas as culturas nacionais. E que basta que falte uma parcela na adição para que a conta esteja errada. Foi, de resto, Montaigne que assim no-lo ensinou, redigindo a sua obra monumental no idioma materno, ele que o aprendera só depois de conhecer o latim cosmopolita.
(Diário, XIII, 1983)
1983
Publica o volume XIII do Diário.
Comemoração das bodas de ouro do curso médico, no dia 18 de Junho, no Hotel do Buçaco. Miguel Torga, como foi sendo habitual, ao longo dos anos, nestes encontros de confraternização, discursa sobre o evento (“o tempo já nos fez compreender a exemplaridade de certos comportamentos, e que basta às vezes a sombra dum cedro e uma nesga de infinito para encher uma alma”).
O texto será reproduzido no volume XIV do Diário.
Encontra-se com Samora Machel, em Coimbra, quando de uma visita oficial do Presidente da República de Moçambique a Portugal. Miguel Torga convida-o a visitar a região do Douro.
Coimbra, 9 de Outubro de 1983
Encontro e larga conversa a sós com o primeiro Chefe de Estado de uma nossa antiga possessão africana. Retirados, de entrada num salão oficial, e depois a voar de helicóptero num céu de Outono português, éramos como que a imagem exígua e algo transcendente de duas nações em diálogo, uma já velha, feita, projectada, e outra mais jovem a fazer-se, mais realidade política do que espaço pátrio. […]
(Diário XIII, 1983)
1984
Faz uma viagem ao México, na companhia do Padre Valentim Marques.
Registando no Diário a passagem pelos lugares (Acapulco, Oaxaca, Chinchen Itza, Uxmal, Mérida, Teotihuacan, Cidade do México), reflecte sobre a realidade histórica, social, política e religiosa.
Cidade do México, 17 de Março de 1984
[…] Há aqui três dimensões que violentam o meu natural lusitano. A índia, que é uma opressão religiosa, a espanhola, que é uma opressão histórica, e a americana, que é uma opressão económica. E para o entendimento de todas tenho de forçar a compreensão. Não adiro à crueldade da primeira, não justifico o sectarismo da segunda, e maldigo o vampirismo da terceira. […]
(Diário XIV, 1987)
1986
Grava poemas em estúdio para um disco comemorativo que irá sair no ano seguinte, por ocasião do octogésimo aniversário, na editora Valentim de Carvalho. O LP receberá o nome Oitenta Poemas.
Lisboa, 19 de Novembro de 1986
Gravação de um disco. Quatro horas fechado numa câmara de silêncio a declamar textos na penosa sensação de estar a fazer um registo a título póstumo como quem dita o testamento.
(Diário XIV, 1987).
1988
No dia 29 de Outubro, na reunião dos 55 anos do curso, dirige-se aos colegas numa breve e lúcida alocução de despedida.
Adaptação televisiva de “O vinho” (Contos da Montanha) com realização de C.J. Michaëlis de Vasconcelos e interpretação de Raul Solnado.
1989
Recebe o Prémio Camões. Trata-se do primeiro autor a receber o mais importante galardão literário da língua portuguesa. O prémio é entregue em Ponta Delgada, no âmbito das comemorações do 10 de Junho, numa cerimónia presidida pelo Presidente da República, Mário Soares.
Ponta Delgada, 10 de Junho de 1989
Uma vida longa dá para tudo. Para se nascer obscuramente em Trás-os-Montes, mourejar adolescente em Terras de Santa Cruz, percorrer, solidário, na idade adulta, os actuais paí-ses lusófonos em luta pela independência, visitar, alanceado, na velhice, o que resta do Oriente português, e receber agora, nestes patrícios e paradisíacos Açores, um prémio sob a égide de Camões. Nos intervalos, ser cidadão a tempo inteiro, com profissão tributada e deveres cívicos assumidos, e poeta rebelde, cioso da sua liberdade de criador, numa época atribulada, de guerras, tiranias políticas, campos de concentração, terrorismo, bombas atómicas e outros flagelos […]
(Diário XV, 1990)
No dia 2 de Junho, é-lhe atribuída a condecoração de Oficial na Ordem das Artes e Letras, da República Francesa.
1990
Publica o volume XV do Diário.
É homenageado no Goethe Institut de Coimbra (23 de Novembro).
Já um dia afirmei em letra redonda que escrever é o supremo risco que um homem pode correr, pois se constitui réu num tribunal perpétuo, de que são juízes os leitores das sucessivas gerações. Ainda hoje estão sentados no banco judicativo os grandes e pequenos Homeros de todas as civilizações. Deus queira que eu não seja um dos candidatos à condenação final.
Recebe também uma homenagem na Academia de Coimbra (14 de Dezembro),no âmbito no VII centenário da fundação da Universidade.
O grupo de teatro “O Bando” encena uma versão dramática de Bichos (direcção de João brites). O espectáculo foi inicialmente apresentado no Convento do Beato, em Lisboa, tendo tido posteriormente representações em várias cidades do país e do estrangeiro.
1992
Recebe durante o ano diversas homenagens:
Prémio Vida Literária, da Associação Portuguesa de Escritores, na sua primeira edição.
Lisboa, 19 de Março de 1992
[…] Expus-me sempre nas montras timidamente, como um culpado contrito, quase a pedir desculpa aos ocasionais leitores do meu atrevimento. Embora ufano da vocação, nada mais pretendi do que cumpri-la, e ser humilde e livremente um fala-só que falasse por muitos.
[…] E sequei o tinteiro na mira de dar expressão local e universal a essa constante diversificada. […]
(Diário XVI, 1993)
Prémio Figura do Ano, da Associação dos Correspondentes da Imprensa Estrangeira (recebido no Estoril, a 8 de Julho).
Prémio Écureil de Literatura Estrangeira, do Salon du Livre de Bordéus. Este galardão é recebido numa cerimónia realizada na Câmara Municipal de Coimbra:
Coimbra, 14 de Setembro de 1992
[…] Tive palavras para escrever muitos livros, mas não me ocorre nenhuma que valha a pena em momentos cruciais como este. Tolda-se-me a voz, e só no silêncio fechado do coração consigo pagar a quem devo. É que a vida não cabe num discurso, por mais sincero e pensado. Misteriosa e imprevisível, confunde a lógica de qualquer engenho.
(Diário XVI, 1993)
Apesar das homenagens, este ano é marcado por um acontecimento doloroso:
O encerramento do consultório médico de Adolfo Rocha, no mês de Junho. Dessa mágoa nos dá conta Miguel Torga numa das anotações do Diário. Oferece o material cirúrgico ao Hospital da Misericórdia de Arganil, onde operou durante anos; e o mobiliário à Junta de Freguesia de S. Martinho.
Nos Estados Unidos realiza-se, no mês de Outubro, um colóquio internacional sobre Miguel Torga, na Universidade de Massachusetts, Amherst.
1994
De 3 a 5 de Março, realizou-se no Porto um Colóquio Internacional sobre Miguel Torga, uma iniciativa da Universidade Fernando Pessoa, com a participação de professores, investigadores, tradutores e escritores.
É transmitido na RTP2 o documentário “Torga” da autoria de Jorge Campos.
Recebe o Prémio da Crítica 1993 do Centro Português da Associação Internacional dos Críticos Literários.
No dia 7 de Setembro, é agraciado pelo governo do Brasil, em cerimónia que decorre na Embaixada do Brasil em Lisboa.
Envia uma mensagem para ser lida na 1ª reunião do Parlamento Internacional de Escritores, realizada em Lisboa, no final do mês de Setembro.
Homenagem no Conselho Distrital de Coimbra da Ordem dos Advogados. Cunha Rodrigues, Procurador-Geral da República, profere uma conferência sobre as representações da justiça em Miguel Torga.
Nota final
Para a elaboração da presente cronologia da vida e obra de Miguel Torga apoiei-me na leitura dos dezasseis volumes do Diário e do romance autobiográfico A Criação do Mundo. Consultei igualmente para o efeito a documentação do espólio de Miguel Torga depositada na Casa Municipal da Cultura de Coimbra. Destaco ainda a consulta do livro de Clara Rocha, Miguel Torga: Fotobiografia, Lisboa, D. Quixote, 2000, peça fundamental para o estudo de aspectos biográficos sobre Miguel Torga.
Outras fontes bibliográficas: Andrade, Carlos Santarém, Os dias de Coimbra na obra de Miguel Torga, Coimbra, Câmara Municipal de Coimbra / Comissão de Coordenação da Região Centro, 2003; Melo, José de, Miguel Torga, Lisboa, Arcádia, 1960; Melo, José de, Miguel Torga: fotobiobibliografia, Aveiro, Estante Editora, 1995; Moreiro, José Maria, Eu, Miguel Torga, Lisboa, Difel, 2001. Nunes, Renato, Miguel Torga e a Pide, Coimbra, Minerva, 2007.
Carlos Mendes de Sousa